A PRIMEIRA vez que tive oportunidade de ver de perto e trocar uma ou duas palavras de circunstância com o dr. Álvaro Cunhal foi em Havana, no aeroporto de Rancho Boyeros, quando acompanhando meu Pai que na altura desempenhava funções naquela capital, “surpreendemos” o líder comunista a desembarcar de um vôo da Aeroflot que o tinha trazido directamente de Lisboa. Tinha eu quatorze anos – estávamos em Novembro de 1975, poucos dias (ou mesmo horas…) depois de um dia 25 que, contrariamente a um outro de Abril, não lhe deve ter deixado grandes recordações.
Ao longo dos anos e mercê da minha profissão de jornalista, cruzei-me algumas (poucas) vezes com o dr. Cunhal. Foi, salvo erro, numa campanha eleitoral no início do anos 90 que, pela primeira vez, vi o líder comunista “em acção”, chamemos-lhe assim. Estava em Castro Verde, juntamente com o Jorge Lemos Peixoto e o Augusto Baptista (o primeiro já “ex” e o segundo fervoroso e convicto militante da “causa”) quando soubemos que Cunhal ali passaria, a caminho de Mértola, onde faria um comício. Não foi difícil convencer os meus então colegas da velha “Sábado” para rumarmos até lá, com um Augusto certamente mais discretamente entusiasmado que o Jorge, que já tinha dado há muito para aquele peditório. Em Mértola, o Augusto (excelente fotógrafo, diga-se de passagem, talvez um dos melhores com quem me cruzei em toda a minha vida!) foi a “chave” para que subíssemos para o pequeno palco do comício e acompanhássemos de perto um Cunhal que ele tratava com um íntimo tu cá-tu-lá, demonstrando uma intimidade que um sempre misterioso e enigmático Augusto nunca revelaria o mínimo detalhe.
Mas esta não seria a minha única gaffe com o dr. Cunhal. Algum tempo depois, coube-me ir ocupar a direcção de Informação da Rádio Comercial, então ainda estatal e dentro do “universo RDP”. Criei então, aos sábados pela manhã, um programa intitulado “Prova dos Nove”, que durava duas horas – a primeira em que eu entrevistava uma personalidade política; e a segunda em que um “painel” de comentadores colocava também questões ao convidado. As “negociações” para levar o dr. Cunhal aos estúdios da Sampaio e Pina duraram algumas semanas e não foram fáceis. Do lado lá, da Soeiro Pereira Gomes, o meu interlocutor era, salvo erro, o Jorge Cordoeiro, responsável pelo gabinete de imprensa do PCP que – e bem – discutia o mínimo detalhe, com especial atenção ao painel que naquela ocasião me acompanharia na entrevista ao seu líder. Depois de alguns dias de espera, veio o acordo aos três nomes que eu tinha indicado: Ricardo Leite Pinto e os jornalistas Rogério Rodrigues e o já referido Jorge Lemos Peixoto. Comentadores aceites, data agendada, tudo certo portanto.
Lembro-me que no sábado em questão, cheguei à rádio por volta das dez da manhã, uma hora antes do programa começar. Estava no meu gabinete, revendo notas e ultimando os preparativos da entrevista, quando batem à porta e entra o Rui Onofre. Perguntará quem não sabe: quem é o Rui Onofre? Pois bem, o Rui era um antigo militante do PCP que, ainda jovem, tinha sido enviado para Moscovo para estudar e a quem, possivelmente, a realidade da pátria soviética tinha feito “abrir os olhos” (para uns), “renegar os ideais” (para outros) e converter-se num feroz e implacável crítico do comunismo. O Rui, boa pessoa, era desde há uns meses nosso correspondente em Moscovo, de onde – verdade seja dita… – enviava crónicas bastante equilibradas, ainda que se notasse de quando em quando uma certa vontade de ajustar contas com um passado que visivelmente o tinha marcado. Num segundo percebi tudo, principalmente a alhada em que estava metido… É que uma semana e tal antes antes ele tinha aparecido a despedir-se de mim, já que as suas férias estavam a terminar e iria regressar a Moscovo daí a dois ou três dias. Numa conversa de circunstância, en passant, eu tinha-lhe referido que era uma pena que não estivesse em Lisboa quando o dr. Cunhal fosse ao “Prova dos Nove”: “Se estivesses cá, punha-te no painel…“, referi-lhe. A conversa tinha ficado por ali, não fosse Onofre ter ficado com a pulga atrás da orelha e adiado o regresso a Moscovo – isto sem que eu soubesse ou voltado a pôr-lhe a vista em cima. Até essa “maldita” manhã…
– “Então estás cá ainda?!“
– “Fiquei mais uns dias. Não me disse que era engraçado que eu participasse na entrevista ao Cunhal?“, respondeu-me, deixando-me completamente “à nora” e sem saber como é que ia descalçar aquela bota…
Tinha três opções: a primeira, dizer ao rapaz que “nem pensar”, que ele não me tinha avisado e que “agora é impossível”. Mas custava-me fazer-lhe isso – percebia que ele ansiava por aquele momento. A segunda, era aguardar pelo dr. Cunhal e expôr-lha a situação, solicitando o seu agréement para a inclusão à última hora de um quarto integrante do “painel” – e era isso que devia ter feito, diga-se de passagem, ainda que adivinhasse a reacção, mais do que de Cunhal, a dos seus acompanhantes… A terceira, pela que optei, foi mandar montar mais um lugar e microfone no estúdio e… seja o que Deus quiser!
Dez ou quinze minutos antes do programa, recebi o dr. Cunhal à porta da Sampaio e Pina, cruzámos aquele longuíssimo corredor trocando algumas palavras de circunstância e lá entrámos no estúdio. Virado para a porta, eu tinha à minha esquerda e a uns dois metros de distância, Cunhal sentado numa outra mesa e, à minha direita, tinham lugar os comentadores convidados, Rui Onofre incluído. Os minutos iam passando, o início do programa aproximando-se e eu praticamente “rezando” para que o líder comunista não desse pela presença de um quarto comentador, muito menos que soubesse quem ele era. Já estávamos em pleno noticiário das onze, a pouco mais de um minuto do programa começar, quando o dr. Cunhal que até aí tinha estado a rabiscar umas notas, levantou a cabeça e se me dirigiu: “Ó José Paulo Fafe, pode chegar aqui um segundo?“. Ai, pronto, já está… Lá me levantei, um olho no relógio, um ouvido no noticiário e a medo lá me aproximei da mesa do entrevistado. Falando baixinho, com uma expressão facial imperturbável, Cunhal disse-me serenamente: “Queria só dizer-lhe que neste estúdio, contrariamente ao que estava combinado, está presente uma pessoa a mais“. Atrapalhado – claro – respondi-lhe de imediato: “Ó sr. dr., tem toda a razão, toda. Se quiser, essa pessoa sairá de imediato, não tem problema, a falha é minha…“. Com um ar meio condescendente, mas com uma ironia bem visível, Cunhal arrumou a questão: “Não é preciso, só quero é que isso fique claro antes do programa começar!“. Uff, claríssimo – quem nem água, como diria o outro…
Já agora refira-se que na segunda hora do programa, quando Rui Onofre teve oportunidade de questionar o seu antigo líder (sim, porque na verdade ele via-o mais como isso que como qualquer outra coisa…) este não teve qualquer pejo de, com uma frieza impressionante (desculpa lá, ó Rui…) “desfazê-lo”, trazendo mesmo à liça relatos tidos sete ou oito anos atrás num congresso em Almada com “um jovem que curiosamente me faz lembrar fisicamente muito o entrevistador que me colocou essa questão e que, vejam lá, defendia exactamente o contrário do que está implicitamente a defender na pergunta que me faz…“.
Para terminar: tanto o dr. Cunhal como eu pertencemos aquele grupo que não fomos tocados pela fé, ainda que no seu baptismo (coisa que eu não tive), lá em Seia, a sua madrinha tenha sido nada mais nada menos que… Nossa Senhora da Conceição. Mas apesar de ambos sermos agnósticos e se porventura existir um “lá em cima” e o histórico líder comunista ler este post, só me resta, muito respeitosa e sinceramente, dizer-lhe: “Desculpe lá qualquer coisinha, dr. Álvaro Cunhal“…
Dr. João Paulo Fafe,
Permita-me felicitá-lo por este seu post. Que duas estórias fantásticas contadas de de uma maneira tão cativante e num português tão escorreito. Apesar do dr. Álvaro Cunhal não fazer parte do meu leque de personalidades preferidas em termos políticos, acho que apesar de tudo era alguém a quem se deve respeito pela coerencia que sempre mostrou.
Escreva mais destas suas memórias. De certeza tem mais, muito mais.
Parabéns.
Com os cumprimentos, António Marques
Uma delícia!
Relatos que definem bem a personalidade de uma figura ímpar da nossa História. E também a noção que o Fafe tem disso ao contar esses episódios.
Amigo ZPF
Li com atenção o teu post pois tens essa forma de contar as coisas como só tu sabes.Só mesmo tu me farias ler sobre Cunhal.
Imagino o que pensarias desse homem aos 14 e depois em adulto.
Eu não só não tenho a mínima simpatia por ele como tenho razões fortes de lhe ter certa mania.
Posso garantir que não fossem Jaime Neves, Eanes e alguns mais, Cunhal não seria nenhuma figura agradável de recordar………
Li muita coisa programada.
Vi listas de nomes a abater(assassinar).
Sei do que falo.
Foi uma fera enjaulada que nunca teve força para se libertar e que como dizem as comunistas e os comunistas portugueses que nunca souberam o que era o Comunismo nem em que realmente votavam, “Graças a Deus”.
Grande texto, Zé Paulo!
Abraço,
Rui