NESTE TEMPO que começa agora a ser de nomeações, expectativas e frustrações, dei por mim a recordar um episódio que, como é habitual dizer-se, si non è vero, è benne trovato – e que lá nos idos dos 50, teve como protagonista um aparentemente imperturbável prof. Salazar e um dos poucos secretários ou subsecretários de Estado que então existiam…
Pois parece que o tal governante foi um dia surpreendido com um daqueles singelos cartões de vista que Salazar tinha por hábito enviar quando dispensava os serviços de alguém: “António de Oliveira Salazar, agradece reconhecido“… O homem (o secretário, subsecretário de Estado ou lá o que era) ia caindo da cadeira! Mandado embora, assim de um momento para outro, sem estar à espera, ainda por cima agora que a vida lhe estava a correr tão bem… Como naquelas alturas, o tempo tinha outro tempo, o nosso homem deixou passar uns dias até conseguir arranjar um argumento que pudesse fazer reverter a intenção do presidente do Conselho em dispensar os seus serviços. Pediu uma audiência (coisa que normalmente demorava semanas…) e no dia e hora marcados lá entrou no austero gabinete de S. Bento. Na “carteira” levava – pensava ele… – uma razão que iria fazer o sempre determinado prof. Salazar a deixa-lo ficar mais uns tempos no cargo que lhe sabia tão bem:
– “Senhor Presidente do Conselho, lá recebi o seu cartãozinho de visita…“
– …
– “Deixe-me dizer-lhe que sei que serão os superiores interesses da Nação que o levaram a dispensar os meus serviços e queria expressar-lhe a quanta honra que tive em servir a Pátria e Vossa Excelência nas funções que me confiou…“
– “A Nação também lhe está agradecida, senhor doutor…“, ripostou Salazar, fazendo menção de levantar-se e assim pôr fim à breve conversa.
Mas foi aí que o nosso homem, resolveu tirar a carta da manga:
– “Sabe, Senhor Presidente? Eu no entanto estou a defrontar-me com um problema que gostava de expôr à sua consideração e para o qual humildemente me atrevia a solicitar a sua atenção…“
– “Diga-me lá então senhor doutor, em que o posso ajudar?“, respondeu-lhe um já algo enfadado Salazar.
– “É que Senhor Presidente do Conselho, poucos dias antes de receber o seu cartão, eu tinha acabado de convidar para meu secretário um rapazinho lá da minha terra que se acabou de formar e a quem se avizinha um futuro brilhante…“
– …
– “Ainda por cima, veja lá Senhor Presidente, em função do meu convite, o rapaz recusou um convite para ir trabalhar para o notário lá da nossa cidade e agora sinceramente não sei como hei-de fazer…“, soltou o ainda governante, como quem lança um trunfo sobre a mesa.
Salazar ouviu, “obrigou” a conversa a um prolongado silêncio e, não conseguindo disfarçar um ar matreiro, respondeu ao seu interlocutor:
– “Não se preocupe com isso, meu caro senhor doutor, não se preocupe. Eu ando há uns meses à procura de um secretário, pode ser que o rapaz sirva…“
Desconcertado, sem saber o que fazer, o nosso homem ficou branco que nem cal:
– “Ó Senhor Presidente, eu não sei se o rapaz está à altura de tamanha responsabilidade, não sei se me atreveria…“
– “Se estava bem para si, estará certamente bem para mim, senhor doutor…“, respondeu-lhe um divertido Salazar.
A breve reunião tinha chegado ao fim. Destroçado, ao sair do palacete de S. Bento, o nosso homem nem acreditava no que tinha acabado de acontecer: “E agora, onde raio é que eu vou arranjar alguém para mandar para o Salazar?!“. Já não lhe bastava ter deixado de ser secretário ou subsecretário de Estado, agora tinha de encontrar um até então inexistente “rapaz” para trabalhar com o presidente do Conselho. Tarefa que conseguiu levar a cabo, ainda que com alguma dificuldade, daí a uma ou duas semanas.
Os anos passaram e daí a um ou dois, numa das raras visitas que Salazar se dignava a fazer à sede da União Nacional no Largo da Misericórdia, um grupo de dignatários do então partido único recebia o chefe do regime. De repente, um pouco inopinadamente, o antigo governante interpelou Salazar, que acabava de entrar no palacete contíguo à Igreja de S. Roque: “Então Senhor Presidente, que tal o rapazinho, que tal se tem portado?“. Fingindo-se surpreendido, quando se preparava para subir a escadaria, olhou na direcção de onde vinha a voz, fitou o seu antigo secretário ou subsecretário de Estado e, com um indisfarçável ar de gozo, ripostou: “Um bocadinho melhor de quem mo recomendou, senhor doutor, um bocadinho melhor…“.