QUEM CONHECEU Francisco Salgado Zenha sabe bem quanta seriedade e verdade este homem punha em tudo o que fazia – na advocacia, na política, na sua vida pessoal. É profundamente difícil descrevê-lo, até porque essa descrição seria inevitavelmente desajustada, pecando por defeito. Zenha era daquelas figuras que já não existem e que encaravam a política como um desígnio, colocando os valores antes de qualquer coisa, sendo firmemente fiel aos princípios e aos compromissos, muitas vezes sacrificando amizades e benesses em nome de uma coerência inigualável.
Desde criança que o conheci e tive a honra (foi mesmo honra, acreditem!) de trabalhar com ele na sua campanha presidencial de 1985, quando por uma questão de consciência, decidiu candidatar-se numa eleição que tinha como adversários Mário Soares, Freitas do Amaral e Maria de Lourdes Pintasilgo. Uma campanha “à antiga”, com dias e dias na estrada, jornadas extenuantes e debate político à séria, apesar de alguns adversários já a recorrerem a todo o tipo de baixezas e insídias (estou bem lembrado dos tempos de antena do derrotado Freitas do Amaral, onde as imagens de Zenha eram cobertas de “sangue” numa tentativa cobarde e própria de escroques em “colá-lo” às FP-25…), mas com “frentes-a-frentes” televisivos que punham o País inteiro frente aos ecrãs.
Vem isto a propósito de um episódio que nunca me irei esquecer, ocorrido comigo, durante a longa e interminável “volta do candidato”, penso que para os lados de Aveiro – seria na Murtosa? No banco de trás de um Peugeot azul-escuro que calcorreou milhares e milhares de quilómetros em estradas ainda de macadame e repletas de buracos, uma das minhas funções era transmitir ao candidato alguns dados sobre as localidades que íamos visitar. Em Belém (agora pode dizer-se, penso eu…), o staff do então Presidente Eanes preparava, distrito a distrito, enormes e detalhados dossiers verdes-escuros, onde as características e problemas de cada local eram descritos e enunciados ao pormenor:
– Sôtôr…
– Diz lá…
– Agora vamos parar na Murtosa…
– E o que é que está previsto?
– Uma volta pelo largo principal e se tudo correr bem, talvez um discursozito… Depende de quantas pessoas estarão lá.
– ‘Tá bem…
– Sôtor…
– Sim, diz lá…
– Talvez fosse conveniente, se houver discurso é claro, referir a questão do centro de saúde…
– O quê?!
– Sim, o centro de saúde está pronto há mais de um ano e ainda não abriu porque não foram colocados nem médicos nem enfermeiros…
– Olha lá… – diz-me com um ar de enfado do tamanho do mundo – o que é que eu tenho a ver com isso?!
E eu já meio a medo: – “Os médicos, ’tá a ver… talvez dizer que…”
– Mas dizer o quê, homem? Diz-me lá uma coisa: tu achas que se eu for eleito Presidente da República, que não vou ser, eu teria qualquer hipótese ou competência de colocar lá nessa terra um médico ou um enfermeiro ou o que quer que fosse?! É óbvio que não! E tu queres que eu prometa isso?! Era só que faltava! Nem penses nisso, não contam comigo para isso! Estamos entendidos?!
Estivémos, é claro que sim…
Gente que faz falta.