HOJE PELA manhã, ao ver uma reportagem qualquer sobre mais uma edição do Festival de Cannes, onde surgia a actriz Catherine Deneuve, lembrei-me do meu amigo João Soares Louro, que nos deixou há pouco mais de 8 anos. O Soares Louro era um tipo incrível, protagonista de mil e uma histórias, tão divertidas quanto insólitas e que lhe conferiam uma aura que fazia dele centro de atenções estivesse ele onde estivesse. Era difícil não se gostar do Louro e mesmo zangas episódicas, como a que eu tive com ele nos tempos que coincidimos na RDP, acabavam sempre em francas e simpáticas reconciliações. Dele e sobre ele ouvi milhentas histórias, umas contadas pelo próprio, algumas por terceiros e outras (poucas, infelizmente…) que também vivi. Lembro-me, por exemplo, daquela vez, nas eleições de 1980, quando Soares Louro, à frente da campanha de uma debilitada FRS, resolveu contratar quatro ou cinco camiões TIR para “avariarem” em pontos estratégicos de Lisboa ao fim da tarde e assim complicarem a vida a uma pujante AD, que organizava naquela noite um grande comício na Alameda. Ou de outra, quando nessa mesma campanha, inventou um “zepelim” e queria à viva força colocar lá dentro Mário Soares e outros dirigentes socialistas e fazê-los aterrar nas praças das principais cidades portuguesas. Ou ainda quando contava deliciado o episódio, era ele presidente da RTP, de ter recebido, ainda por cima no mesmo dia, telefonemas de responsáveis de três partidos políticos (no caso PS, PSD e CDS) a “pedirem” pelo mesmo funcionário da televisão que, pasme-se, garantiam ser seu militante – Carlos Pinto Coelho de seu nome. E muitas outras, estas reveladoras de uma Lisboa boémia, que Louro frequentou e “alimentou” nas décadas de 60 e 70 – histórias essas certamente já “prescritas”, mas sobre as quais incide ainda um natural “direito de reserva”…
Mas a melhor história que eu conheço de Soares Louro data de finais dos anos 70, quando a RTP, de que ele era presidente, escolhia o sistema de televisão a cores que iria adoptar – se o francês ou o alemão, cujos responsáveis não se poupavam a esforços para conquistar a preferência da nossa televisão pública. Um dia, a TDF decidiu convidar Louro a viajar a Paris, para que conhecesse de perto o seu sistema – no caso o SECAM, assim se denominava a tecnologia francesa. Aceite o convite, foi enviada para Lisboa uma proposta de programa para a estada do responsável máximo da RTP e que incluía, além das óbvias reuniões de carácter técnico – veja-se o empenho do governo francês no “dossier”… – um encontro com o então primeiro-ministro, Raymond Barre. A concordância de Louro chegou aos franceses, mas com um pedido: “O senhor presidente da RTP concorda com o programa, mas quer encontrar-se com a actriz Catherine Deneuve durante a sua estada em Paris” – assim, sem mais nem menos! Na capital francesa, os anfitriões de Louro devem ter-se entreolhado e feito as maiores suposições sobre o insólito desejo do presidente da televisão portuguesa. A Catherine Deneuve?! Mas porque raio lhe havia de dar para isso ao homem?! Mas como nestas coisas de interesse de Estado, os franceses não brincam e serviço, rapidamente se puseram em contacto com a actriz, expuseram-lhe o problema, acordaram num valor para o cachet e, daí a uns dias, na manhã combinada, a Deneuve lá entrou no Hôtel de Crillon, sendo conduzida até à sala privada onde Soares Louro a aguardava. Cumprimentaram-se cerimoniosamente, sentaram-se à mesa e os primeiros momentos foram de certo algo constrangedores para a actriz, que Louro, com aquele seu olhar matreiro e sedutor, mirava e remirava. E quando Deneuve se preparava para encetar uma daquelas conversas de circunstância, Louro disparou: “Catherine, já não te lembras de mim, pois não?” Surpreendida e após alguns segundos para tentar lembrar-se se alguma vez na vida se teria cruzado com aquele seu interlocutor, a actriz respondeu de forma categórica: “Pardon, mais je ne me souviens pas“. Não resisto a imaginar o gozo com que Soares Louro deve ter escutado a resposta “profissional” da sua conviva: “Não?! Não te lembras daquele português, o João, que conheceste no Avenida Palace em Lisboa há coisa de vinte anos, quando estiveste lá a passar umas férias com a Françoise?!“. A actriz olhou fixamente para Louro e num ápice relembrou aqueles dias passados com a sua irmã em Lisboa, era ela uma miúda, e quando aquele rapaz de olho verde tinha, mesmo e ainda que episodicamente, infligido alguns “estragos” no seu coração: “Ne peut… Joao, c’est toi?!“, exclamou, desfazendo-se num sorriso aberto e quebrando o tom cerimonioso de um pequeno-almoço para a qual a tinham “arrastado”. A partir daí , o encontro formal e cerimonioso que tinha sido programado para ser entre a diva do cinema francês e o português que era presidente da televisão do seu país, transformou-se numa refeição de amigos relembrando histórias, episódios e cumplicidades. Imagine-se pois a cara do funcionário da TDF que acompanhava Soares Louro quando, uma hora e tal depois, estranhando a demora, entrou discretamente na sala para apressar o fim do pequeno-almoço… Contava o João Soares Louro (e olhem que eu ouvi esta história, da boca dele, umas três ou quatro vezes…) que era meio-dia e ainda estava à mesa do Crillon com a sua amiga Catherine. E sempre que referia a história, não resistia com ar de gozo, a pôr-se na pele dos seus anfitriões: “Os gajos deviam pensar que eu queria engatar a Deneuve ou coisa assim. Mal não sabiam eles que para mim, isso seria sempre uma réprise…“.