O EPISÓDIO já tem mais de 20 anos, salvo erro ocorreu em 1992 ou mesmo ainda em 1991. Eu tinha ido a Buenos Aires visitar os meus Pais que então ali viviam e numa noite ao jantar, lembro-me como se fosse hoje, o meu Pai desafiou-me para ir aos tangos: “Há uma casa aqui perto que não é má de todo, não está ainda muito ‘turistizada’, vale a pena…“. Não me lembro do nome da casa, recordo-me no entanto que o local em causa de facto era diferente de todas as outros a que mais tarde fui e em que a “contaminação turística” se sente até no até no ar que se respira… Entrámos, conduziram-nos à mesa que o meu Pai tinha tido o cuidado de mandar reservar, sentámos-nos e a media luz lá fomos ouvindo e vendo um espectáculo discreto, sóbrio e que era pontualmente interrompido por um apresentador que era assim uma espécie de “fio condutor” do espectáculo e que fisicamente – vá lá saber-se porquê! – fazia lembrar o “nosso” Almeida Santos. Germinal Nogues, assim se chamava essa personagem, que mais tarde vim a saber ser um reputado historiador da cidade e do tango e de quem guardo até hoje um livro dedicado. A certa altura, num tom e num registo mais de mestre de cerimónias que propriamente de “porteñólogo” (como ele gostava de se auto-classificar) , aproveitando uma pausa do espectáculo, o dito Germinal resolveu, num tom mais protocolar e que o castelhano normalmente acentua, anunciar à sala com voz de barítono, o que ele considerava como “ilustres presencias” naquela casa de tangos e para quem pedia “un fuerte aplauso“. A reacção de meu Pai não se fez esperar: “Estamos tramados“, disse-me em surdina. Tinha razão. Do alto do pequeno palco, Germinal , indicando a nossa mesa, apressou-se a anunciar, entre a inevitável referência ao fado e a Amália, a “Su Excelencia, el Embajador de Portugal” que, coitado, lá teve de levantar-se e retribuir um aplauso perfeitamente desajustado tanto para o local como para a ocasião. Logo a seguir, com a mesma pose, voz e suspense, o nosso Germinal decidiu revelar quem era a outra “ilustre presencia” que, numa mesa mais recatada, também assistia ao espectáculo. E após uma longa introdução, lá revelou o nome: “El célebre ator de Hollywood, el grande Omar Sharif!!!“. Escusado será dizer que toda a sala se virou na direcção da mesa onde, autenticamente esparramado numa cadeira e acompanhado por mais dois convivas, o actor egípcio acenava profissional e sorridente perante a ovação que o anúncio naturalmente motivava. Terminado este intermezzo, ou seja, Germinal Nogues voltou à sua faceta de historiador e apresentador do tango que a todos ali nos tinha levado. Não devia ter passado mais de meia-hora, quando vi avançar algo cambaleante na direcção da nossa mesa o próprio do Omar Sharif. E entre abeirar-se da mesa e sentar-se não tardou mais que um segundo, mesmo que ninguém o tivesse convidado a fazê-lo. Sorridente, visivelmente demasiado efusivo, o actor começou logo a contar que tinha estado em Lisboa há poucas semanas, num torneio de bridge no Hotel Ritz, que tinha adorado a comida, que tinha ido a Sintra, visitado o Casino Estoril, enfim aquelas coisas todas que nós portugueses estamos habituados a ouvir da boca dos estrangeiros. A conversa foi-se arrastando (na verdadeira acepção do termo, até em termos de dicção já algo entaramelada por parte do egípcio…) e definitivamente Sharif decidiu trocar os dois argentinos que o acompanhavam na mesa lá do fundo pelos dois portugueses que tinha acabado de conhecer, quando mandou o empregado trazer a sua garrafa de Bells para a mesa dos seus novos “amigos”, onde a acabou de esvaziar, mas sempre (lembro-me tão bem…) misturando o whisky com água. Estávamos já, eu e o meu novo amigo a mandar abaixo a segunda garrafa que entretanto mandei vir para a mesa, e o Omar (vejam já a intimidade) a tentar explicar-me que contrariamente ao bridge, o gamão (que eu tanto lhe confessava gostar e jogar) não passava de um jogo apenas de sorte e de jogadas pré-definidas, quando o meu Pai, sempre com aquela notável perspicácia e serenidade que o caracteriza nos momentos-chave, me disse discretamente: “Zé Paulo, eu vou andando, até porque já passa da uma e meia. Ficas?“. Tentei demovê-lo, mas o argumento que, igualmente de forma discreta e com um sorriso, meu Pai usou, deixou-me sem resposta: “Vocês estão muito chatos…“. Olhei para as duas garrafas de Bells (a segunda também já praticamente vazia…) em cima da mesa e percebi que sim, que o meu Pai devia ter “alguma” razão. O que não me impediu de ficar. Até que horas não sei. Só sei que cheguei a casa de táxi já passava das seis e no caminho deixei o meu amigo Omar, que já dificilmente se aguentava em pé, nos braços de um simpático e prestável porteiro do mítico Alvear…